Amanhã ser

Quero que pinte esse quadro pra mim, ok? E quero escrito assim, com letras maiúsculas e grandes. Quero amanhã ser com um sol raiando em minha face. Quero amanhã ser, porque por hoje é só.

Quero que pinte esse quadro pra mim, ok? E quero escrito assim, bem grande, com seu nome bem pequenininho embaixo. Quero ser, mas amanhã, porque por hoje é só.

Quero que pinte esse quadro para mim ok? E que tire xerox colorido da tela. Em uma máquina bem grande. Quero que amplie o seu nome, já não tão pequenininho embaixo, para que você possa também. Quero que amanhã seja.

Quero que pinte pra mim, ok? Sim, esse quadro! Esse mesmo, ou vai dizer que ainda não entendeu? Se você não souber pintar você inventa um desenho, sei lá. Só faça isso por mim, estarei aguardando amanhã.

Quero que pinte pra mim, e te darei meu endereço. Espalhe as cópias pela cidade. Cole nos postes, nos pontos de ônibus, a noite, sem ninguém ver. Quero sair na rua e ver seu quadro lá, ao lado (ou por cima) do anuncio da cartomante.

Quero que pinte esse quadro pra mim, ok? Quero amanhã ser. E quero cores coloridas. Nada de cinza ou preto. Quero amanhã ser.

Amanhã, mas só amanhã, quando seu quadro chegar.

Gotas D'

Fui tomar banho e esqueci de levar a toalha para o banheiro.

E está frio.

E estava pensando em você.

Não deu outra: enrolei-me em minhas saudades e fui-me embora.
Nunca me senti tão aquecida...

Cotidiano

Eu caí outra vez, e queria que soubessem disso. Afundei-me em mim mesma. Assim, redundante.

Eu caí outra vez, e queria que soubessem disso. Preciso levantar-me. Preciso aprender a permanecer em pé. Mas é que fico bem nas pontas, sabe? E aí desequilibro. Não sou bailarina, sou soldado de chumbo. De um chumbo bem pesado, mais pesado que os outros. Sou um soldado de chumbo que insiste em querer voar, e ficar bem nas pontas, sabe, pra quase voar?

Mas também não sou uma ave, e se for, sou um avestruz. Daqueles de pernas bem compridas que quase tocam o céu, mas nunca tocam. Sou um avestruz.

Sou incapaz de carregar meu próprio peso. Para voar, deveria deixar minha alma para trás, esquecer de mim para me ser. Mas é muito complicado, e tenho muita preguiça.

Tenho muita preguiça, sabe? Daquelas preguiças de deitar na cama e não levantar nunca mais pra nada. E ver o mundo desabar e não estar nem aí. Nem aí, nem em lugar algum.

Não pertenço a lugar algum. A nenhum algum lugar que eu conheça. E os lugares que desconheço não existem para mim. Tenho que largar a minha bagagem, abrir as malas e deixar cair tudo, na frente de todo mundo. Pra todo mundo ficar boquiaberto. Assim talvez possa voar.

Não consigo. A bagagem não está comigo, e sim em mim. Estou dentro da mala, que é pequena demais para me deixar crescer e grande demais para me fazer desistir.

Sobre cores e cães

Não, ele não subiu na cama, isso eu não permito. Mas entrou no quarto só um pouquinho. Ele não parava de latir. Deitou-se no tapete e então adormeceu. E eu adormeci ao seu lado, no tapete. Fiquei pequenininha como um brinquedo de plástico, um elefantinho roxo rasgado ao meio em meio as brincadeiras de um cachorro meio criança. Gosto dessa cor, e queria pintá-lo de roxo. Mas ele é preto, teria que descolorir. Não quero mais, dá muito trabalho.

Clarice me faz companhia ao lado do tapete, e o meu cão a lê. Divide-se entre a leitura e o elefantinho, que está bem preso entre as suas patas para não fugir, como se prende alguém que a gente ama. E suas unhas já compridas se enroscam na minha quase pele de borracha, me ferindo aos poucos e suavemente, como se fere alguém que a gente ama.

Meu cão no tapete me lança um olhar de piedade. Pede desculpas por ser somente um cão. E eu o perdôo com uma única condição: quero estar sempre entre suas patas.

Peço desculpas por ser somente humana.

Sobre baratas e borboletas

O meu ser renasce a cada minuto e o que fui ontem, hoje não sou mais. Sou o oposto. O oposto de mim, de um eu esquecido no passado de alguns segundos atrás.
E por ser oposto de mim não me deixo ser nada, não me completo. E quando quase me sou, e quando quase me entendo, me transformo. De lagarta a borboleta em apenas alguns segundos. De borboleta a lagarta logo se aprende a voar. E caio. Caio de uma altura enorme, e engulo minhas asas frágeis e transparentes. Sem cor. Uma lagarta-borboleta esfomeada e sem cor.
E logo me transformo outra vez, e vôo. Vôo para bem longe de mim, do que me fui um dia. Vôo para não me saber. É muito doloroso conhecer as próprias fraquezas. E minhas qualidades não são boas o suficiente para que eu possa correr esse risco. As minhas qualidades nunca conseguem se completar, nunca tornam-se concretas. E a cada oposto, uma nova fraqueza. Elas se multiplicam como pragas, como as baratas que ficam no armário da pia. E fazem sexo sob o prato que amanhã usarei para comer. Fazem uma festa. Uma orgia. As fraquezas dançam e cantam e se alimentam de restos. Os restos do que um dia eu fui, porque a essa altura, não sou mais. Sou o oposto. O oposto de mim, de um eu esquecido no passado de alguns segundos atrás. E tudo não passa de uma ilusão.

Ela comprou uma bolsa de bicicleta. Colocou a bolsa na cadeira giratória, deitou na cama que havia herdado de sua falecida mãe e se pôs a sentir dores. Sentia muitas dores, nas costas, principalmente, e tinha medo de ficar paraplégica. As dores aumentavam quando ela tirava o sutiã, e se tornavam insuportáveis depois de um tempo com ele. A bolsa, nova, ainda não utilizada, girava com suas rodas de bicicleta. Sua vida permanecia estática. As bicicletas em formato de sombra a faziam pensar na imagem real. Nada era real. A bolsa, a cama, a cadeira giratória, sua coluna e seu sutiã. Não eram reais. Faziam-se sombras de algo desconhecido, e tudo girava. As bicicletas iam para frente e para trás, com suas rodas negras feitas de sombra. Ela podia jurar que as folhas eram azuis, um azul celeste de quem quase voa, e que faziam com que as bicicletas voassem. Ela podia jurar que as folhas eram vermelhas, de um vermelho alvo de quem quase ama, em contraste ao escuro de seu todo amor. Todo amor para todos, menos pra ela. E as bicicletas voavam e quase amavam. Todas as asas pra todos, menos para ela.

Suas costas não paravam de doer. Que bom, pelo menos se preocupava com algo, algo fazia com que ela lembrasse que ainda era humana. Sentia dor. Ainda era humana. Era capaz de nutrir algum sentimento por ela mesma.

E transpirava sentimentos, tentava bebê-los, o vermelho escuro escorria pelos seus poros e encharcava seu colchão, deixava-o um pouco mais macio. O vermelho escuro escorria pelos seus desesperados dedos, inúteis, ao tentar pegá-lo. Sua mão parecia estar sangrando. Sangue de amor ao próximo. E ela desobedecia mais um sacramento. Não amava ao próximo como amava a si. Amava-o muito mais! O Próximo era adorável, fantástico, capaz e alguém! E ela era apenas uma menina com dores e uma bolsa de bicicleta.

As bicicletas teimavam em ir para frente e para trás, prosseguir e retroceder enquanto sua vida permanecia estática, seus sonhos permaneciam inalcançáveis e suas conquistas permaneciam sendo apenas meras obrigações.

Mas seu coração pulsava. Ah! E como pulsava! E seus pensamentos voavam pela imensidão. E entre rodas e dores ela ia vivendo. Ia levando.

Mas seu coração pulsava. De maneira irreal, ilógica, mas pulsava. E aí ela comprou uma bicicleta. Mas mesmo assim nunca conseguiu acompanhar a bolsa, que estava sempre a frente de seus passos.

Nunca conseguiu acompanhar nada. Nem a si. Nunca conseguiu acompanhar nada, até suas dores estavam sempre à frente de seus passos.